terça-feira, 16 de agosto de 2011

Um sono profundo


O alarme tocou. Ela mandou-o ao chão num reflexo rápido. Tocou novamente, afinal não tinha parado, tornava-se irritante, demasiado irritante. Tinha dormido pouco naquela noite, aliás, não tinha dormido nada, absolutamente nada. Queria acreditar que não sabia o porquê das suas insónias, preferia fingir que era só alguma coisa no seu corpo que não a deixava dormir. No fundo, ela mentia a si própria, não dormia somente por uma causa – a mesma causa de sempre desde há algum tempo para cá. Ele.

“Ok, é só mais uma etapa depois adormeço profundamente para nunca mais acordar”

Era o seu pensamento todas as manhãs, sabia que era mentira, que por mais que quisesse, algo a manteria presa a vida. Mais uma vez esse algo era ele. Mas preferia dizer isto a si própria e ganhar vontade para um novo dia.
Dirigiu-se à cozinha, abriu todas a prateleiras à procura de algo que pudesse satisfazer o seu desejo, nada. Abriu o frigorífico, o armário das louças, o congelador, a máquina de lavar louça, nada. Mas então se não tinha fome teria o quê? Decidiu ir então à sala, nada. Depois foi até à casa de banho, nada. Foi à rua, novamente nada. No entanto sentia algo, um desejo ardente mas discreto, percorria-lhe o corpo inteiro e fazia-lhe comichão, umas vezes ardor. Inicialmente quando acordou pensou que era fome, já não comia há algum tempo e talvez fosse por isso que sentia aquela sensação tão estranha de aperto na sua barriga. Mas não, enganou-se mais uma vez, ou melhor, mentiu a si própria mais uma vez. Já estava a ficar saturada que isso acontecesse, ela sabia do que precisava, sabia qual era o seu desejo e a razão de estar assim. Mas não iria ceder, ela jamais cederia.

“Vou só passear, talvez me afaste destes pensamentos. Tenho de descontrair, não faz mal ir dar uma volta”

Pegou no carro. Dirigiu-se para um algures, nem ela sabia onde ia. Preferiu ser guiada pelas suas memórias, embora inconscientemente, ela queria que assim fosse. Não estava bêbeda, nem sequer se tinha embebedado a noite anterior para esquecer os problemas. Sim, ela própria achou estranho não mergulhar no seu vício, o seu mais profundo inimigo que tanto amigo era por volta das quatro da manhã todas as noites. Mas naquela noite, a anterior, não tinha cedido, nem sequer tinha pensado nisso. Mas sentia-se bem, demasiado bem…se calhar foi por isso que decidiu dar uma volta ao sítio onde foi, queria remediar-se mas sentia que não devia ser daquela forma, rápida, inocente e emotiva.
Parou o carro. Dirigiu-se ao portão. Sim, ainda se lembrava dele, aquele vistoso portão verde ornamentado com retoques primaveris. Lembrava-se de cada vez que passava por ele para ir de encontro ao seu amado, e de quando por detrás daquele requinte todo colocado numa só porta ele aparecia com um sorriso largo e transparente e de braços abertos, à sua espera. Lembrava-se dos seus abraços que deixavam um toque de “quero mais” e dos seus beijos suaves mas sedativos, tudo aquilo acontecia todos os dias até há algum tempo atrás.
E agora ela ali estava, parada, á frente do portão a desejar ser recebida da mesma maneira que anteriormente. No fundo sabia que isso não ia acontecer, já estava habituada a sonhar alto, sabia que ele mostraria uma cara de espanto por a ver e talvez de irritação. Nunca o devia ter deixado, ele ajudava-a com o seu vício, conseguia fazer com que ela trocasse o álcool por beijos, ele tinha o poder de a manipular a em vez de a deixar agarrar-se a uma garrafa obrigá-la de um bom modo a agarrar-se ao seu corpo. E ela aceitava, ela amava-o. Mas estupidamente o álcool subiu-lhe demais á cabeça, deixou-o somente para beber. Fugiu. Nunca mais voltou. Foram três anos desaparecida. Já não vivia bem desde que tinha fugido. Ainda o amava. O seu vício no fundo não era o álcool mas o facto de necessitar de atenção perante ele, e aquela foi a sua maneira de isso acontecer.

“Sou mesmo idiota. O que fui eu fazer?”

Bateu ao portão, alguém lhe abriu. Esse alguém que ela esperava que fosse ele era uma figura suja e atarefada, era o jardineiro - um homem velho e carrancudo que já era fiel à família à 40 anos. Que tremenda desilusão.
Ele olhou para ela de soslaio, e analisou-a com estranheza. Primeiro porque estava ali, ela em pessoa. A fugitiva do seu patrão. Depois porque estava de pijama ainda e não era normal uma rapariga aparecer de pijama muito menos aquela hora, eram três da tarde. Havia alguma pessoa sã de aparecer daqueles jeitos?

- Ele está?

De repente um olhar de assombro reflectiu-se nos olhos do jardineiro, ela ainda não sabia da notícia. Como poderia saber se esteve desaparecida. Imaginou de repente que estivesse estado numa clínica de desintoxicação. Mas depois de uma segunda reflexão percebeu que o seu aspecto não indicava para isso.

- Não. Foi-se.

- Foi-se? – disse ela

- Sim, da mesma maneira que tu foste, ou que ele pensava que tinhas ido.

As suas pernas tremeram, o seu coração parecia ter parado. Desejou naquele momento ter uma garrafa de vodka ao seu lado. Ele foi-se. Morreu. Tal como ele pensava que tinha acontecido com ela. De repente lembrou-se do seu plano maníaco para a sua morte fingida, um acidente por embriaguez. Sentiu-se inútil, estúpida, idiota, cansada, deprimida, morta. Agora sim tinha razões para deixar o mundo, já não havia nada que a prende-se.
O jardineiro irritado por ela ter aparecido agora tarde demais, expulsou as palavras que ela sabia que eram a verdade mas que não queria ouvir.

- Foste a culpada. Tudo por tua causa sua cabrazinha. No lugar de um coração tens uma garrafa de wisky. Ele morreu por ti, para ir ter contigo. Mas parece que apanhou uma desilusão quando chegou ao seu destino divino. Vai-te embora. Não apareças mais!

Dirigiu-se para casa. Nem soube como tinha conseguido fazê-lo. Mas foi, entrou logo no seu quarto e caiu na cama. Sentia-se estafada, sem forças, impotente. Pela primeira vez em três anos conseguiu fechar os olhos sem a ajuda de comprimidos ou álcool. E antes de entrar no seu sono profundo lembrou-se da frase que dizia todas as manhãs, desta vez não estava a mentir a si própria, já não se lembrava à quanto tempo isso não acontecia. Tinha uma fotografia dele junto ao seu coração. Ela amava-o. Ia agora ter com ele. O aperto na sua barriga começou a desaparecer à medida que fechava os olhos. E as suas últimas palavras foram as suas primeiras todos os dias desde que o deixou de abraçar, de beijar, de o apoiar, de fingir não amar.

 - Ok, é só mais uma etapa depois adormeço profundamente para nunca mais acordar.

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