terça-feira, 30 de outubro de 2012

Chove a potes



Eu sei. Eu lembro-me. Foi num dia de chuva. Chovia a potes, dizias tu. E dizes, creio. Nunca mudavas de hábitos, portanto ainda o deves dizer. Ou pelo menos, sê bom para mim - deixa-me imaginar que ainda o dizes. Por favor. Preciso de saber que ainda te conheço, que ainda sei as marcas na tua cara, como sei as da tua pele, as dos teus olhos, as mais negras – sabes – aquelas que só eu via. De que te envergonhavas de mostrar, porque – sei lá – o negro do teu corpo sempre te aterrou.

Para dizer a verdade – a mim também. Mas está tudo bem, ninguém precisa de saber disso. Só nós. Não te preocupes. Continua a sorrir-me, a embalar-me, como fazes sempre. Que eu não conto a ninguém do que te fizeram. Ainda é o nosso segredo não é? Só nosso, eu prometo. Eu juro. Como te jurei não esquecer. E sabes … eu não esqueci. Seria impossível esquecer-te.

Eu sei. Eu lembro-me. Foi nesse dia de chover a potes. Estavas encharcado – aterrado até cima de água e de memórias. Mal andavas - todo ensopado e ferido, morto para quem te secou, vivo para quem te enxugou. Para mim – estavas só ali tu, o mesmo de sempre, o mesmo de todas as horas, de todos os momentos. Somente tu. Por favor, diz-me que ainda continuas somente tu – quero lembrar-me das palavras que gastavas comigo. Eu sei. Eu lembro-me. Delas. De ti. De nós.

A escuridão das tuas marcas abandonaram-te, sumiste. Juntamente com esse dia em que potes caiam do céu. Para mim caiam tijolos, não potes. Caía o peso das tuas mágoas, feitas lágrimas que não se retêm. Feitas vidas que não duram, águas que caiem e que não marcam, que sufocam e não esquecem.

E por isso eu sei. Por isso eu lembro-me. Por isso choveu.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Já nao me mudo




Não sei se as coisas mudaram, ou se sou eu que já não me mudo.
Não sei se é de mim, se é de outro. A cada céu vermelho que atravessa o horizonte diariamente eu sei que foi mais um – sem mudança. Farto, carregado, com o peso de me livrar de mais um dia longe de ti. Ou longe – quem sabe – de mim.
E eu consigo sentir esse cheiro a novo, sabor a mais – talvez a menos. Consigo tocar-lhe, por momentos, consigo vivê-lo. Já sabia que era saudade antes de a ser. Sabia dessa mudança que me mudou, nada me desfez, nada deteriorou.
Dizem que o tempo tudo leva- ou derruba sobre nós. Quanto mais, eu esperava que levasse esses restos de mim - flácidos e já com sinais de velhice. Ao menos que me enterrassem essa nostalgia embrenhada na pele, que já não é minha, que se escamou e caiu e que ainda tanto se agarra, tanto me necessita. Sinal da mudança que nunca veio, ou que passou e se esqueceu de mudar.
Encanta-me essa brisa que por mim passa e não para, que de mim foge e não espera. Que de mim exige e não oferece. Ainda tentei mudar os hábitos, trocar costumes, forçar as coisas. Pressionei os dias a serem véus de escuridão, exigi essa passagem rápida pelas coisas, queria ser como a mudança – estonteante e imune – queria ser eu a responsável.
De tal modo, que de mudar nada tive. Quando quem quer é quem pede, as coisas simplesmente não querem e não tornam. Não fazem. Não mudam.
Não sei. Não sei se é de mim, se de mais. Não posso saber. Mas sinto esse novo ar, nova brisa, enterros por fazer, peles por escamar, memórias por arquivar. Ou as coisas mudaram, ou fui eu que me mudei.
 E a cada céu que atravessa o horizonte eu sei que foi mais um - com o peso de me livrar de mais um dia longe de mim. Ou longe – quem sabe- de quem eu fui.