segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O amor não foge


Eu acho que o amor não foge,
Pelo menos não fugia.
Eu acreditava, ingenuamente,
Que sempre permanecia.

Escondia-se atrás de um véu sem cor,
Sem textura que lhe valesse,
Tinha somente asas
Que faziam com que permanecesse.

E voava,
Como alguém perdido,
Achando-se o maior de todos
Por ter sempre um porto de abrigo.

Todos os dias ele pousava
Num lugar diferente,
Todos os dias tinha um novo lar
E acolhiam-no de boamente.

O amor não foge,
Ou eu achava que não.
Sabia que ele tinha asas
- Mas faltava-lhe o perdão.

Ele que voe enquanto pode,
A natureza assim o deixa,
Tempestades sempre ocorrem
Quando nenhuma vivalma se queixa.

O amor não foge,
Fica com as asas encharcadas.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Honrar


Em honra aos marinheiros,
Aos soldados
E aos cavaleiros,
Que com arcos e flechas,
 Cordas e arpões,
Defenderam
O seu lugar
Enganando mil e um corações.

Em honra a todos eles,
Cuja espada os vingou
Na hora em que se entregaram
Quando o amor os avistou.

A eles,
Que lamentaram as fortes marés
E as grandes tempestades,
Que não chegaram a ser mais fortes
Que as suas eternas bondades.

Uma forte saudação,
Pela vossa prestação e empenho
Que são agora exemplo
Do que é ter um frágil coração
 Tão perdido como eu vos tenho.

Nada vos matou
Até a verdadeira morte chegar,
Porque quando a vida é sôfrega
Tamanha alma deixa de amar.

Mas a vocês, uma honra,
Gentis companheiros,
Que só se deram por vencidos
Quando lhe apunhalaram o coração,
A ela,
Aquela por quem viviam
Sem aparente razão.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sou eu


Sou ar,
Sou vida,
Sou mar.

Sou o que não pensei ser,
- A armadilha
Presa na teia do meu olhar
Cujo engenho já não quer prender,
Já não quer soltar.

Sou sujidade,
Sou pó,
Sou restos de um pedaço
Que já foi madeira
E que agora é aço.

Seria estrada,
Se tivesse um trilho,
E sol se soubesse brilhar.
Mas faltou-me a coragem
Para a aventura
De ser mais que a amargura
Vinda do meu olhar.

Estou livre
Por trás da cela
Que me trava o coração.
- Sou eu,
A inventora da armadilha
Produto de tanta canção.

sábado, 7 de janeiro de 2012

A história de uma rapariga humana


Eram sete da manhã e eu ainda tinha o cabelo emaranhado de problemas, a roupa enroscada com o tropeçar dos meus pés, a mala de viagem rota pelo destino e vazia - por mera preguiça. Já devia estar pronta, mas como sempre, atrasei-me. Não só para uma mera viagem da rotina diária incessante, mas para tudo.

- Sou humana. – Costumava ser a minha resposta para os atrasos que se amontoavam ao longo do tempo.

Tinha tido um sono leve e mal conseguia abrir os olhos, no entanto levantei-me e fui até à janela. O dia a começar e eu ainda nem me tinha preparado para ele. Levei as mãos à cara na tentativa de fazer desaparecer os traços de cansaço que se começavam a acentuar, eram a resposta às minhas noites mal dormidas na tentativa de escrever as palavras que não conseguia soletrar. Estava ali, sobre o parapeito, a imaginar o volume de papel que coloquei no lixo na noite anterior. Rabiscos mal conseguidos - fruto do meu orgulho, que nem com um corpo cansado e uma alma farta desiste.

Eu era o problema, era eu que distorcia a realidade e a tornava num lugar obscuro – local onde os meus cabelos se entrelaçavam e teimavam em não se separar na hora de não me atrasar. Na verdade, reflectiam o que eu era – uma desajeitada, preguiçosa, que nem umas meras palavras conseguia escrever. Inútil.

Comecei por me vestir, mas cada peça que me revestia tornava-se um casulo do qual eu não conseguia sair. Sentia-me presa e sobretudo tão cansada…

Acho que na vida, naqueles momentos inoportunos e sem razão, ingénuos – nós acabamos por desistir. Desistimos do fácil e do simples, sem nos apercebermos. Naquele dia percebi que o momento de falhar era aquele, não estava com paciência para esforços. Odiava o simples. Era tão ingénua.

E parti, com uma mala de viagem rota e vazia, com roupas enroscadas e largas para não me sentir presa e com um cabelo emaranhado de problemas do qual eu não conseguia sair. Nem levei escova, nem pente, nem nada. Desisti – rumo a não sei onde, um sitio onde o simples não atrapalhasse.

Achei por bem deixar um bilhete para aqueles que me amavam, tinha consciência que o que fazia era errado.

“Desisti pelo cansaço, atrasei-me por livre vontade e parto com o coração pesado. Estou presa e preciso de uma roupa nova, uma mala bonita e uma escova que cumpra o seu dever. Fujo em busca daquilo que ainda não consegui soletrar, mas que estou agora a escrever. Perdoem-me. “

O rumo ao meu destino falhou pouco tempo depois – admiti que o atraso foi não querer viver e o cansaço produto da minha imaginação.

Era ingénua e parti porque sabia que a vida não tinha lugar para atrasos, em tudo devíamos chegar na ocasião. No meu caso, consegui chegar a tempo de viver. E a minha resposta mais uma vez foi:

- Sou humana. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O elogio da ausência - excerto III


4 de Fevereiro de 1900

8h15m

- Estás à espera de alguma coisa? – Disse Margarida, estranhando a presença do marido ainda aquela hora em casa.
                Duarte estava a olhar para ela como quem olha para uma sereia, enfeitiçado pelo seu encanto e beleza. Na verdade, naquele dia particularmente, a Margarida reflectia uma ternura natural que já não lhe via desde o dia em que se casaram, fazia dois anos dali a duas semanas, mais ou menos.
                - Estou a admirar-te, minha querida.
                Ela ficou especialmente espantada por aquele elogio logo pela manha, estará doido?, pensou. No fundo, estava contente, já haviam meses que nenhuma palavra acerca do seu aspecto era pronunciada. Que esplendor e felicidade que Margarida estava a sentir naquele momento, de maneiras tão grande que lhe apetecia fazer amor com ele, ali, entrelaçados no meio da loucura. O seu desejo foi aumentando e começava a sentir-se nervosa com a sua presença, não se queria descair no meio daquela cozinha improvisada. Margarida acalma-te, foram só umas palavras de bom dia do teu marido, não penses já coisas, despede-te dele, vá. Disse para si própria, na tentativa de persuadir os seus desejos.
                - Tenho de ir embora, já estou atrasado. Só queria falar contigo um pouco. – Foram as palavras de Duarte, saídas com tremura.
                Ele estava nervoso e Margarida sentia-o na sua própria pele, como se o que ele sentisse ela também conseguisse presenciar, por pura união. Sempre achou que se completavam de uma maneira como nenhum outro casal que ela alguma vez conheceu. Amavam-se, sobretudo.
                Duarte tentou não parecer assustado, fez de tudo para se ir embora naturalmente. Sem que ela percebe que algo mais se passava. Acariciou-lhe a barriga, que já acartava um rebento de cinco meses, o seu futuro filho – ele sentia que era um rapaz que viria ao mundo – que sabia nunca vir a ver. Por vezes dava por si a imaginar os jogos e brincadeiras, as passeatas e as idas à caça com ele que terminavam com um lindo jantar feito pela sua adorada mulher. Iriam ser os melhores amigos, poderia ter uma vida perfeita. Não fosse o seu passado o atormentar.
                - Levas o farnel? Não te quero a passar fome, enche-me essas peles! – Repeliu Margarida, entusiasmada ainda com a simpatia do marido de há pouco, pondo a sua tigela de batata e carne num saco de serapilheira já velho e usado.
                - Está descansada, este belo almoço só vai ficar seguro quando estiver na minha barriga. – Duarte decidiu brincar, preferia que ela o lembrasse com frases divertidas ao invés de lamúrias que não serviam para nada e só atrapalhavam a vida.
                - Vá, não te demores mais comigo – deu-lhe um beijo repleto de ternura e paixão – Não quero que te despeçam, temos um filhote a caminhar para este mundo e precisamos de todo o dinheiro possível.
                Esta era a parte mais difícil. Ele sabia ser a última vez que a veria, nada podia fazer em contrário. Já tinha decidido receber esta despedida de ânimo leve e acreditar que era o melhor para todos. Se ao menos ela soubesse…, pensou para si mesmo. Mas não, ela não podia saber. Restava despedir-se com a simpatia, ternura, elegância e coragem que ela própria merecia. E assim fez, deu-lhe um último beijo sôfrego e juntos ficaram abraçados durante algum tempo. Margarida estava atónita com todo este amor, ao qual não estava habituada - Duarte estava sempre tão atarefado que pouco tempo tinha para lhe dedicar. Mas não resistiu, apesar de pressentir que isto não vinha ao acaso. Para ela, nunca nada vinha ao acaso. No entanto, como excepção, não se preocupou. Confiava no marido. Amava-o incondicionalmente.
                - Adeus Margarida meu amor, até logo. – Sorriu, temendo o pior. Que ela viesse a descobrir a força que ele fazia para não deixar escorregar uma única lágrima mais matreira.
                - Ai credo homem, que romantismo é este todo? – Saiu-lhe.
                - Sou eu, contente por te ter.
                E foram as últimas palavras que pronunciaram um ao outro naquele dia e em muitos anos que se seguiram. Talvez para sempre.

Excerto do livro "O elogio da ausência" escrito por Sara Penas.