domingo, 18 de março de 2012

O dia (a)normal


Sentia um aperto estranho na barriga.
Levantou-se da cama e olhou para o espelho do seu quarto na esperança de descobrir o que o fazia sentir-se assim- diferente, estático, firme, bonito, feio, confuso, zangado, romântico, desamparado…

Sentia-se…nem sabe como. É verdade que já não comia há algum tempo mas não seria isso que o faria sentir-se um cúmulo e obriga-lo a olhar para a sua imagem refletida no espelho, acompanhada pela desilusão. Também era verdade que já não falava com qualquer alma viva fazia agora duas semanas, mas não seria isso que o obrigaria a sair de casa. Estava bem assim, ou achava que estava.

Nos últimos dias tinha-se limitado a comer bolachas de água e sal, para disfarçar a fome, e a olhar para a moldura disposta sobre a mesa-de-cabeceira, já com o vidro partido e a foto meias que rasgada.

Olhou para o lado só para confirmar as suas suspeitas.

Bolas.”

Pensou – ao ver a garrafa de whisky vazia, mais uma vez, e não saber ou não se querer lembrar de onde e o porquê de a ter despejado.

Há duas semanas consecutivas que estava ali, no refúgio do seu quarto, a beber tudo o que havia na despensa e a falar com uma foto que mais memória não era, para ele, mais memória não seria. Há duas semanas que sentia um aperto estranho na barriga, um vazio incontornável, uma estrada inacabada, uma falha.

Todos os dias acordava como se fosse um novo dia – normal – tomar o pequeno-almoço, uma hora de trânsito na cidade, emprego, outra hora de trânsito, supermercado e casa.

Minutos depois, ao tomar consciência da realidade voltava esse vazio, igual ao do dia anterior, apagado da memória pela bebida. Apercebia-se então, que aquele, não ia ser um dia normal, nada disso. Já se tinha tornado uma rotina questionar-se todos os dias do porquê da moldura adormecer ao seu lado, e porque razão a foto estava sempre húmida e os seus olhos inchados e vermelhos. Ele só queria esquecer o que se tinha sucedido, refugiou-se da maneira que pode e deixou de tomar as rédeas do seu destino.

Passada a fase da aceitação, que acontecia por volta das 8h e prolongava-se até às 12h, coisa menos coisa, entrava num transe quase que inexplicável. Colocava-se sobre o parapeito da janela, focava um ponto no céu e assim permanecia durante horas a fio imaginando como seria…

“Se não tivesse acontecido, se eu estivesse mais atento, se eu fosse super-homem, se eu…

Culpava-se – então era o momento de esquecer mais uma vez, de perder a memória até ao próximo dia e fazer tudo de novo amanha como se nada soubesse, como se o hoje não existisse e o depois não estivesse em causa. Como se o seu cérebro não conseguisse armazenar a informação e cair na realidade.

Aquela moldura sempre lhe tinha sido especial, mas agora, mais que nunca, era a única solução para relembrar esse passado que ainda era tão recente.

E durante toda a noite, deitado na sua cama, as memórias avivavam-se, a moldura tomava vida e ele retrocedia no tempo. Para os dias de felicidade e para o tempo em que era ingénuo o suficiente a ponto de pensar que vazios como os que sentia agora não existiam. À noite ele sonhava. A verdade é que os sonhos tornaram-se a sua vida, deixou-se dominar por ilusões, começou a viver no passado. Pobre coitado que substituiu a vida por umas lágrimas.

E por não querer acreditar, por insistir em permanecer num mundo paralelo – voltou a acordar novamente no seu quarto. Regressou à Terra naquela nova manhã, esqueceu tudo o que fez no dia anterior e voltou, mais uma vez, a pensar que aquele era um dia normal.

- Querida, deixaste-me adormecer! Sabes que não tenho paciência para estar horas a fio no trânsito da cidade.

Só que aquele não era mais um dia normal.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Pesadelo

Traíste com palavras severas,
Com sonhos adormecidos
 E suavemente te perdeste
Em olhos meus – destemidos.

Divagaste por histórias antigas
E aos meus lábios pediste perdão.
Tentaste,
Em meus sonhos despedires-te
Com um simples sopro
Às cinzas da paixão.

Nem disseste adeus,
Que tempo tu não tinhas.
Tempo nunca tiveste,
Nunca o pediste,
Nunca necessitaste.
Entregaste a alma à memória
Que assim persiste,
Assim a enfeitaste.

Tens o dom de assim partir,
E é a partir que te sentes bem.
Marcando pistas a sucumbir,
Palavras contadas a ninguém.

domingo, 4 de março de 2012

O elogio da ausência - excerto IV


“(…) Procurei-te pelo mundo inteiro, dei voltas cegas e insípidas. Tenho o coração esgotado e meu amor, quero que percebas que a idade já não é a mesma – tenho falta de ti, falta do desejo de viver e da vontade de sorrir.
Procurei-te pelos cantos obscuros e atravessei desilusões, tempestades, fome – por ti. Mas vejo a minha esperança a esgotar-se como tudo o resto que já morreu. Falta-me o tempo. Metade da minha vida, procurando nem eu sei o quê. Achava que eras tu. Mas não só, procurava também alguém que me amasse como tu o fizeste. Foram desafios falhados, cartas arrumadas no baú que vou acartando a cada viagem à procura de provas, pistas, de que ainda estejas vivo, ou parte de ti.
Tenho saudades. Saudade de esperar um dia inteiro que chegasses a casa, fatigado do trabalho, e eu te reconfortasse com um jantar quente. Saudade dos nossos sonhos de irmos viver para o campo e construirmos lá a nossa família. Saudade de te escrever, como agora, e acreditar que um dia irias ler.
Estou velha para ter esperanças, mas eu sei, no fundo, que há coisas que voam do nosso coração e perdem-se ao tentarem regressar. Mas isso, claro, não significa que não continuem a procurar.

Sempre, Margarida. “


Excerto do livro ”O Elogio da Ausência” escrito por Sara Penas.

sábado, 3 de março de 2012

Boa sorte, amor


E as coisas mudam sem te aperceberes. Pensavas que nada iria substituir esse sentimento de dor e desilusão. Quando te diziam para seguires em frente no fundo acreditavas que isso nunca seria possível, estavas presa a alguém que já era passado mas que no teu coração continuava presente e desejavas no fundo que ainda estivesse no futuro. Odiavas sem razões e dizias estar bem quando só te apetecia gritar. É normal, tu amavas. Amavas mesmo. Sem razões, motivos, argumentos, explicações, nada. Tu simplesmente te entregaste. Mas sim, as coisas mudam. No momento em que pensavas que nada poderia piorar, que o teu ódio e saudade não poderiam ser mais cruéis contigo, eis que surge uma esperança. E aquela pessoa que dizias ser especial, não sabendo porquê, ela era diferente para ti. Mas era, já não é. Dizem que as desilusões ajudam a esquecer. Mas nunca funciona. Nem vale a pena. Só o tempo. O tempo sara ou disfarça a ferida, atenua a dor e faz-te esquecer a desilusão.

Acreditavas que ninguém a podia substituir, chegaste a pensar que nunca mais serias capaz de gostar de alguém. Mentira, tu mudas. Mudas para não sofreres, escondes o que verdadeiramente és para não te voltarem a fazer o mesmo. Enlouqueces. Mas mudas. Por esta altura sentes-te sozinha, sem ninguém, vazia, incompleta, nostálgica – sem concerto que the valha.

A vida prega-nos partidas inexplicáveis. Estavas tu tão bem – a mudar. Quando aparece, para bem de todos os males, alguém que renova a tua fé, que te faz acreditar de novo que o amor é possível, só precisa de ser cuidado. Faz-te ficar acordada a noite inteira a imaginar cenários futuros, faz-te cantar durante o dia e publicar posts românticos idiotas. Até és capaz de prescindir do teu valioso tempo para dormir só para ficares acordada a falar de coisas, que não são coisas. Abstrações que tanto a ti como a ele são comuns e que adoram discutir horas a fio.

Tu percebes que encontraste alguém. Alguém melhor. Que te ajuda a ter forças e que será durante os próximos tempos a razão de acordares com um sorriso na cara.

É verdade que a maior parte das coisas não são substituíveis. Ficam lições, somente. Mas ainda bem que é assim. Quando deres por ti a escrever algo como isto perceberás que seguiste em frente como nunca pensaste fazer. Perceberás que esta será a última vez que irás escrever sobre o passado. Porque sim - o futuro apresenta boas previsões e tu odeias tempestades.
Mereceste tudo o que fizeste e o que farás. Boa sorte.