terça-feira, 30 de agosto de 2011

Carta à distância


Querida distância,

Minha longitude permanente, meu andarilho inseguro, minha dor ausente. Acho que nunca te escrevi, também nunca foi preciso – tinha tudo demasiado perto de mim, contudo demasiado longe.
Preciso de desabafar contigo, ou melhor, simplesmente falar contigo, talvez amoleças e te tornes um pouco mais pequena. És demasiado grande, demasiado astuta, coerente, orgulhosa. Nasceste com certeza a partir de uma dor, criaste o teu próprio conceito de sofrer, vingaste-te nos outros que culpa não têm de nada… És o mal das famílias, a tortura da solidão, a fonte de pecados, o paraíso do diabo. És a dor das guerras, as despesas dos pobres, o sofrimento dos amados. És tudo o que eu não desejo e tudo o que um dia pedirei. Fazes tão bem e tão mal, torturas-me e sufocas-me, fazes-me ficar nostálgica e dependente…viciada em algo que não tenho, algo de que te apoderaste. Roubaste-me. Devia agora estar frustrada por teres tanto poder mas seres ao mesmo tempo tão simples. Nunca pensei que me afectasses desta maneira. Um dia irei-me vingar, porque criarei uma barreira entre ti e o amor. Um dia quererás roubar-mo de novo, nesse dia terei o meu escudo, a minha segurança, a minha própria distância… Nesse dia serei o fruto do meu pecado e não tu. Nesse dia serei a minha dor, a minha solidão…não serás tu nesse momento a comandar-me mas sim eu a comandar o teu rumo e o teu novo conceito – um pequeno e humilde, jamais orgulhoso.

Ouvi



Ouvi dizer que este tempo iria acabar,
Aquele que me está a fazer naufragar.
Ouvi dizer que o barco do meu amor
Está finalmente a recuperar.

Ouvi um nome,
Sussurraram-me segredos…
Combati batalhas
 - De medos…

Ouvi falar na alegria,
Na dor e na compaixão.
Até ouvi dizer que a felicidade
Se pode encontrar no coração.

Ouvi musicas de amor,
Chorei todas as lágrimas possíveis,
Cada melodia solta
Tornava as notas incríveis.

Ouvi falar de um coração,
Que por tempos se tornou em gelo,
Ouvi falar que derreteu
E ao novo estado habitual se submeteu.

Ouvi que seria de alguém,
Um alguém de duas caras,
Talvez fosse meu…
Já que só antes é que coisas de amor eram raras.

Ouvi falar que mo deram,
Mo ofereceram secretamente,
Sussurram-me palavras
Que o fizeram reconstruir automaticamente.

Ouvi dizer que foi graças a esse coração
Que o meu barco não naufragou.
Disseram-me que ele tinha sido colocado
A ocupar o buraco na madeira que por ali se formou.

Ouvi dizer que resultou,
Milagres existem então.
E com tanto que ouvi dizer
Pouco existe mais para chamar a atenção:

 - Somos surdos para quem queremos,
Ouvintes para quem sofre,
Amantes assim dizemos,
Com corações guardados num cofre.

Ouvi falar de tanto não ouvir,
Sussurraram-me de tanto não perceber,
Que esse meu barco agora arrancou
Sem um destino certo, um rumo a prever…

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

As chaves que não abrem


Um sorriso,
Quente e alarmante,
A minha cara escondida
Em tom desafiante.
Um olhar,
Promissor e intenso,
O meu medo posto à deriva
Num barco de gesso.
Um adeus,
Determinado e ousado,
A minha esperança viva
De poder agora morrer de bom grado.
Um mero sinal,
De paixão duvidosa e incerta,
A minha alma em risco
De cair onde há um alerta.
Um beijo,
Um abraço,
Um suspiro,
Coisas que já me parecem difíceis de sentir
Mesmo com as poucas vezes que os miro.
Porque agora tudo sabe a um insonso saudável,
A um salgado demasiado presente,
A minha vida procurando o picante insaciável,
O meu coração examinando aquilo que está ausente.
Quero voltar a mostrar
Tudo aquilo que de certa forma escondi,
As minhas formas de amar
- Abrir o meu coração a ti.

Devia eu saber onde estão as chaves,
Já enferrujadas pelo tempo…
Provavelmente já nem devem conseguir abrir
Aquilo que já devia ter ido com o vento.
Um dia lembro-me de as ter deixado num canto,
Abandoná-las para nunca mais as utilizar,
Deixá-las apodrecer
E assim o meu coração nunca mais poder voltar.
Hoje encontrei-as,
Junto à moldura que parti,
Senti o aviso delas
Para voltarem a abrir
E fazerem-me esquecer aquilo que senti.
Encontro-me então num dilema,
- Continuar a pensar e me martirizar
Ou amar e nunca mais voltar.
Parece tão fácil de escolher,
Basta saber o que o humano necessita,
Mas eu sou mais que isso
- Sou uma alma a querer fazer morrer
Tudo aquilo em que acredita.

E uma lágrima jorrou


E uma lágrima jorrou,
Trespassou o meu coração
Como um tiro.
Uma mera lágrima de medo
Acabada num suspiro.

Pequena e insignificante
Para quem não conhece
Toda esta embrulhada de escolhas
A quem o meu destino padece.

Uma lágrima angustiante,
Sôfrega e faminta,
Corre pelo meu rosto
Procurando alguém que lhe minta.

Vive nos meus olhos durante anos,
Espera o momento certo para se libertar,
O momento propício
Para conseguir tirar de mim
Toda a força que vim a ganhar.

Nunca conheci choro tão imprevisível
Como aquele que se nota que se está a avizinhar,
Aquele banhado por lágrimas
Capazes de memórias fazer despertar.

Resta agora deixá-la vaguear,
Aperceber-se de que só vem atrapalhar,
O seu objectivo de me tentar não foi em vão
Pois agora sei como reage a água salgada
Ao meu coração.

E uma lágrima jorrou,
A última que derramei,
Por quem uma vez me desafiou
Mas que agora me faz ver o quanto errei.

O perdão não existe,
A saudade já lá foi.
Apenas a raiva persiste
E já essa morre juntamente
Com as lágrimas de um depois.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

E assim o mundo mudou


- Peço um desejo?
- Sim, agora mesmo com toda a força que conseguires. Acredita só que é possível e ele terá todas as hipóteses para ser concretizado.

Ele não sabia como ganhar forças para um desejo, era a primeira vez que o fazia. Nunca lhe tinha sequer passado pela cabeça que uma pessoa como ele podia pedir desejos, nunca tinha imaginado que era possível eles serem realizados com um pouco de sorte ou talvez de engenho.
Eram três da manhã, o seu turno de vigia aos caixotes do lixo tinha terminado finalmente, depois de cinco horas sentado no chão frio ao relento numa noite de inverno rigoroso com apenas um caso de malha rasgado e gasto a cobri-lo, tinha acabado a sua tortura. Odiava ficar de vigia, sempre se tinha sentido à parte dos outros membros desta comunidade sem lar por essa razão. Para qualquer rapaz da sua idade era uma oportunidade esplêndida de obter um naco de carne podre a mais sem que ninguém soubesse. Mas para ele eram só mais umas horas passadas em desperdício de uma comida que não existia, já sabia que iria acabar por comer pó do chão em vez de um bocado de pão bolorento ou restos de comida de um restaurante porque os seus compatriotas faziam o favor de o atirar para uma borda e baterem-lhe até não terem mais forças para ele não conseguir comer e deixar assim mais para os outros, estes outros que eram eles em forma de egoísmo, naquelas ruelas obscuras da cidades chamava-se a isso sobrevivência.
Acabava assim por ser o mais pobre mendigo que por lá havia naqueles bairros degradados, ele ainda estava mais abaixo na escola social da Humanidade do que a própria mendigação, poucas pessoas sabem que existe pior, mas a verdade é que ele era a prova disso.
Naquele dia, depois de mais uma vigia atribulada por rapazes famintos e bruta-montes, depois de mais um período de fome imensa e frio derrapante, conseguiu encontrar um bom refugio para fugir aos ”nobres”, sim, era assim que se chamava aos mendigos quase a passarem a estatuto de salteadores profissionais, eram a classe das classes, os piores dos piores, os mais famintos dos famintos e os mais perigosos dos perigosos. Eram o medo. Principalmente o medo dele. Todas as noites tentava encontrar um bom lugar para se esconder, preferia morrer de fome do que nas mãos daqueles ladrões de má qualidade.
Encontrou um túnel perto do rio da cidade, um túnel dos esgotos, mas não era um dos principais, era um daqueles secundários que davam aos sítios mais obscuros e longínquos. Era o local perfeito para se esconder, pelo menos já sabia que naquela noite não iria morrer de espancamento, talvez sim de fome, de magreza, de diarreia, de cólicas, de tosse, de enxaquecas, de dores de barrigas, fosse o que fosse não se importava, apenas não queria deixar o mundo através dos nobres, mas de outra coisa, uma coisa mais pura e natural.
Sentou-se junto a um ninho de ratazanas que ali estava, sentou-se naquele mesmo sítio porque tinha uma espécie de janela, com grades que fazia lembrar uma prisão, mas no fundo era só um túnel de uma rede de esgotos e ainda bem.
Olhava por essa dita janela quando apareceu alguém, sobressaltado levantou-se com medo mas não se pronunciou, sabia que não podiam ser os nobres, por aquela hora deviam estar a assaltar uma loja ou um carro ou dois. Era um alguém idoso, conseguia-se perceber a respiração ofegante e dificultada, mas mesmo a respirar sentia-se a experiencia de vida que esse alguém tinha, inalava experiencia aos montes.

- Quem és? – Perguntou o rapaz assustado pela sua vida.
- Um velho.
- Um velho?
- Sim, um velho. Qual é o problema? Já não posso ser um velho pobre? – disse- lhe já um pouco indignado.
- Podes, quer dizer, não sou eu que te vou dar permissão ora essa! És o que quiseres, quero lá bem saber. Desde que me deixes em paz oh velhadas! – Protestou o rapaz mostrando os seus poucos modos, ou nenhuns, aqueles que nunca aprendeu a ter.
- Então deixa-me ser. Mal criado!
- Apenas protejo-me daquilo que não vejo! – Ripostou o rapaz.
- Ainda tens muito que aprender rapaz, não me insultes, vou até ser teu amigo e juntar-me a ti. E não reclames, ou menos assim sabes que não morrerás de frio por hoje! Vá, chega-te para lá, fica do lado onde estão os ratos se me fazes favor.

O rapaz nem piou, fez o que o velho lhe mandou, sabia que ele tinha razão. Até podia ser que ele tivesse um pouco de comida que lhe desse se estivesse de bom humor e o tratasse bem. Por aqueles lados a esperança é sempre a ultima a morrer. Nunca se perde em tentar. E ele não iria perder nada – tinha mais força que o velho se fosse preciso dar-lhe uma coça.
Foi por essa altura que ambos os dois ao olhar para o céu através das grades enferrujadas viram uma estrela cadente e foi nessa altura também que o velho lhe disse para pedir um desejo.
Pareceu-lhe uma tarefa difícil, pedir um desejo, imaginou mil e uma coisas que gostava de ter – lembrou-se primeiro de um par de sapatos, nunca tinha tido uns, depois lembrou-se de pedir calças, camisolas, gorros, enfim, cada vez os seus desejos se tornavam mais ambiciosos até chegar ao ponto de considerar em pedir um carro blindado e por ultimo um país. E no momento em que estava para o fazer sentiu uma pequena voz, minúscula mas distinta a invadir-lhe a mente. Era a voz dos mendigos com mania que diziam que ele nunca alcançaria o lugar de nobre, nunca seria nada, apenas lixo, lixo humano ranhoso, que era assim que lhe chamavam. Diziam-lhe que estava destinado a ser nada. Um nada absoluto. Um nada que não serve para nada. E de repente a raiva soltou-se de dentro de si, sentiu uma oportunidade de ouro para inverter a situação. E no último momento em que ainda conseguiu ver a estrela disse para sim próprio com uma fé que nunca tinha tido:

“Quero ser alguém, um alguém bom - que mude o mundo e que este mude com ele”

- Fizeste uma boa escolha rapaz. – disse o velho.
- Mas…mas..como sabes o que desejei? Como? – O rapaz estava arrepiado.
- Sou mais do que aparento, tal como tu, que és mais do que um lixo humano ranhoso, és um bom rapaz, há-des ser um exemplo. Agora adormece quente e confortado, vais ser recompensado meu caro.

E ele fechou os olhos, involuntariamente. Morreu, aquecido por um humano, ou meio-humano, não aos murros por um nobre. Morreu, mas de boa vontade, para dar a conhecer ao mundo a vida abaixo da pobreza mínima. O certo é que o seu desejo foi realizado e que ao encontrarem tal alma santa morta naquele tão imundo túnel as coisas mudaram, as pessoas aperceberam-se, finalmente alguém tinha feito jus aos famintos injustiçados pelas classes. A verdade é só uma -  o mundo mudou e este rapaz mudou com ele.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Rotina de uma vida acabada


Acordou.
Já estava na hora
De saber acordar
E pensar o que irá ser da vida
Agora a amar.

Bocejou.
Já estava no tempo de bocejar,
Tirar toda a preguiça
Que alguma vez lhe pôs em risco
De o pé arrear.

Levantou-se.
Finalmente o fez,
Já estava no momento de o fazer,
Antes que a sua alma preguiçosa
 Se fosse de vez.

No fundo mudou,
A dita rotina da morte,
A morte lenta dos pensamentos,
Onde ninguém quer saber de ti
Nem dos teus desalentos.

Superficialmente mantém-se,
Mas não é o exterior que importa,
As olheiras ou os olhos chorosos,
Mas sim os pensamentos novos,
Aqueles ditos revolucionários e vitoriosos.

E neste dia assim foi,
Acordou para vida
E para o que ela pode proporcionar.
E bocejou, levantou-se para o mundo
Esperando o que ele tinha para dar.

À noite adormeceu,
Calma e tranquilamente.
Despediu-se do mundo,
Trazendo consigo as memórias
De uma nova vida acabada recentemente.

Não se importou,
Foi ele que quis na verdade
Que assim acabasse sem decisão do seu juiz
 - O seu amor, aquele fruto da sua dor
Com quem ia agora ter por toda a eternidade.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Conceitos de palavras


Se o muito pode ser tão pouco para alguém e um nada um demasiado inconstante porque é que dizem que o muito é sempre um muito e um nada sempre um nada sem antes saberem a definição de cada pessoa? Se o bom pode ser o mau, e a dúvida a certeza de alguns porque utilizam estereótipos para tanta coisa?
No fundo simplesmente não entendo os conceitos, a definição. Aquilo que permite afirmar algo, mas como afirmar algo se para a pessoa ao nosso lado pode ser uma negação?
Mas se arranjarmos conceitos para a mesma definição, um para cada um, não nos organizamos, as ideias divergem e as opiniões entram em conflito. Mas então como mostrar o pensamento de cada pessoa? Fazer com que a opinião dela seja um marco?
E esta incerteza daquilo que digo um dia pode se afirmar, como posso dizer que amo algo, adoro qualquer coisa, venero isto ou ídolo aquilo se o conceito pode variar. Se amar pode ser sofrer, se o adorar pode de repente odiar, se o venerar passa a desprezar e se o idolar começa a copiar. Como posso dizer algo sem ter a certeza que no dia seguinte tudo mude, como posso eu saber se no amanhã a definição mudou porque alguém assim decidiu já que eu tenho uma, tu que lês tens outra e o mundo uma outra mais…
Resta-me afirmar para alguém que também ache que seja uma afirmação o conceito de algo sem explicação… o conceito de tantas palavras que mudam assim, rapidamente, com uma mera negação.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Esse amar que é dor


E quem não se contenta com sonhos,
Pouco vale a pena pensar,
Quem não os faz querer aparecer
Pouco deve saber da vida para amar.

E esse amar que é amar,
Esse muito que é um nada,
O meio sem o intermédio
Tal dor sem lágrima derramada!

Para um querer basta pedir,
Para pedir basta suplicar,
Suplicando estou a fingir
E assim querer não é amar.

Mas o quero passa a pedir,
O dá-me a mandar,
O peço-te a fugir
E o sorriu-te a escapar.

A suplica pede um amo,
O amor pede uma carta,
O fingimento uma vida
E feita está logo a ferida.

A definição pede socorrendo
- De quem saber o amor sabendo
Lhe possa explicar esta mágoa,
Feita espada, vida morrendo.

E esse amar que é amar,
Essa inocência rara chamando,
Cálice das famílias a suplicar
Que o fingimento lhes está sugando.

Venham mais espadas feitas marés,
Tempestades sem nuvens,
Venham mais “queros” dizer
Que amar é fácil e apaixonar é morrer.

E essa dor que é dor,
Essa porta estreita a bater,
Junto ao quarto do amor
Onde ouvem os gritos de prazer.

Feita a promessa está,
Que amar não é amar
Sem um meio lá estar.
Feito o sacramento entre a dor e amor
Vivam em paz até dizerem
“Adeus, louvor”

Venha o diabo e escolha
Qual deles o pior,
Se o amor por meramente amar
Ou se a dor por ser o seu par.

E esse amar que é dor,
Essa vida feita pudor,
Juras feitas em pecados,
Se o amar é viver
E a dor sofrer…
Oh pobres corações despedaçados!

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Um sono profundo


O alarme tocou. Ela mandou-o ao chão num reflexo rápido. Tocou novamente, afinal não tinha parado, tornava-se irritante, demasiado irritante. Tinha dormido pouco naquela noite, aliás, não tinha dormido nada, absolutamente nada. Queria acreditar que não sabia o porquê das suas insónias, preferia fingir que era só alguma coisa no seu corpo que não a deixava dormir. No fundo, ela mentia a si própria, não dormia somente por uma causa – a mesma causa de sempre desde há algum tempo para cá. Ele.

“Ok, é só mais uma etapa depois adormeço profundamente para nunca mais acordar”

Era o seu pensamento todas as manhãs, sabia que era mentira, que por mais que quisesse, algo a manteria presa a vida. Mais uma vez esse algo era ele. Mas preferia dizer isto a si própria e ganhar vontade para um novo dia.
Dirigiu-se à cozinha, abriu todas a prateleiras à procura de algo que pudesse satisfazer o seu desejo, nada. Abriu o frigorífico, o armário das louças, o congelador, a máquina de lavar louça, nada. Mas então se não tinha fome teria o quê? Decidiu ir então à sala, nada. Depois foi até à casa de banho, nada. Foi à rua, novamente nada. No entanto sentia algo, um desejo ardente mas discreto, percorria-lhe o corpo inteiro e fazia-lhe comichão, umas vezes ardor. Inicialmente quando acordou pensou que era fome, já não comia há algum tempo e talvez fosse por isso que sentia aquela sensação tão estranha de aperto na sua barriga. Mas não, enganou-se mais uma vez, ou melhor, mentiu a si própria mais uma vez. Já estava a ficar saturada que isso acontecesse, ela sabia do que precisava, sabia qual era o seu desejo e a razão de estar assim. Mas não iria ceder, ela jamais cederia.

“Vou só passear, talvez me afaste destes pensamentos. Tenho de descontrair, não faz mal ir dar uma volta”

Pegou no carro. Dirigiu-se para um algures, nem ela sabia onde ia. Preferiu ser guiada pelas suas memórias, embora inconscientemente, ela queria que assim fosse. Não estava bêbeda, nem sequer se tinha embebedado a noite anterior para esquecer os problemas. Sim, ela própria achou estranho não mergulhar no seu vício, o seu mais profundo inimigo que tanto amigo era por volta das quatro da manhã todas as noites. Mas naquela noite, a anterior, não tinha cedido, nem sequer tinha pensado nisso. Mas sentia-se bem, demasiado bem…se calhar foi por isso que decidiu dar uma volta ao sítio onde foi, queria remediar-se mas sentia que não devia ser daquela forma, rápida, inocente e emotiva.
Parou o carro. Dirigiu-se ao portão. Sim, ainda se lembrava dele, aquele vistoso portão verde ornamentado com retoques primaveris. Lembrava-se de cada vez que passava por ele para ir de encontro ao seu amado, e de quando por detrás daquele requinte todo colocado numa só porta ele aparecia com um sorriso largo e transparente e de braços abertos, à sua espera. Lembrava-se dos seus abraços que deixavam um toque de “quero mais” e dos seus beijos suaves mas sedativos, tudo aquilo acontecia todos os dias até há algum tempo atrás.
E agora ela ali estava, parada, á frente do portão a desejar ser recebida da mesma maneira que anteriormente. No fundo sabia que isso não ia acontecer, já estava habituada a sonhar alto, sabia que ele mostraria uma cara de espanto por a ver e talvez de irritação. Nunca o devia ter deixado, ele ajudava-a com o seu vício, conseguia fazer com que ela trocasse o álcool por beijos, ele tinha o poder de a manipular a em vez de a deixar agarrar-se a uma garrafa obrigá-la de um bom modo a agarrar-se ao seu corpo. E ela aceitava, ela amava-o. Mas estupidamente o álcool subiu-lhe demais á cabeça, deixou-o somente para beber. Fugiu. Nunca mais voltou. Foram três anos desaparecida. Já não vivia bem desde que tinha fugido. Ainda o amava. O seu vício no fundo não era o álcool mas o facto de necessitar de atenção perante ele, e aquela foi a sua maneira de isso acontecer.

“Sou mesmo idiota. O que fui eu fazer?”

Bateu ao portão, alguém lhe abriu. Esse alguém que ela esperava que fosse ele era uma figura suja e atarefada, era o jardineiro - um homem velho e carrancudo que já era fiel à família à 40 anos. Que tremenda desilusão.
Ele olhou para ela de soslaio, e analisou-a com estranheza. Primeiro porque estava ali, ela em pessoa. A fugitiva do seu patrão. Depois porque estava de pijama ainda e não era normal uma rapariga aparecer de pijama muito menos aquela hora, eram três da tarde. Havia alguma pessoa sã de aparecer daqueles jeitos?

- Ele está?

De repente um olhar de assombro reflectiu-se nos olhos do jardineiro, ela ainda não sabia da notícia. Como poderia saber se esteve desaparecida. Imaginou de repente que estivesse estado numa clínica de desintoxicação. Mas depois de uma segunda reflexão percebeu que o seu aspecto não indicava para isso.

- Não. Foi-se.

- Foi-se? – disse ela

- Sim, da mesma maneira que tu foste, ou que ele pensava que tinhas ido.

As suas pernas tremeram, o seu coração parecia ter parado. Desejou naquele momento ter uma garrafa de vodka ao seu lado. Ele foi-se. Morreu. Tal como ele pensava que tinha acontecido com ela. De repente lembrou-se do seu plano maníaco para a sua morte fingida, um acidente por embriaguez. Sentiu-se inútil, estúpida, idiota, cansada, deprimida, morta. Agora sim tinha razões para deixar o mundo, já não havia nada que a prende-se.
O jardineiro irritado por ela ter aparecido agora tarde demais, expulsou as palavras que ela sabia que eram a verdade mas que não queria ouvir.

- Foste a culpada. Tudo por tua causa sua cabrazinha. No lugar de um coração tens uma garrafa de wisky. Ele morreu por ti, para ir ter contigo. Mas parece que apanhou uma desilusão quando chegou ao seu destino divino. Vai-te embora. Não apareças mais!

Dirigiu-se para casa. Nem soube como tinha conseguido fazê-lo. Mas foi, entrou logo no seu quarto e caiu na cama. Sentia-se estafada, sem forças, impotente. Pela primeira vez em três anos conseguiu fechar os olhos sem a ajuda de comprimidos ou álcool. E antes de entrar no seu sono profundo lembrou-se da frase que dizia todas as manhãs, desta vez não estava a mentir a si própria, já não se lembrava à quanto tempo isso não acontecia. Tinha uma fotografia dele junto ao seu coração. Ela amava-o. Ia agora ter com ele. O aperto na sua barriga começou a desaparecer à medida que fechava os olhos. E as suas últimas palavras foram as suas primeiras todos os dias desde que o deixou de abraçar, de beijar, de o apoiar, de fingir não amar.

 - Ok, é só mais uma etapa depois adormeço profundamente para nunca mais acordar.