quarta-feira, 3 de agosto de 2011

As memórias feitas em tecido

- Vais buscar a pá.

Ordenou-me.

- Outra vez? Fui lá buscá-la há cinco minutos atrás!

Ripostei.

- Eu sei, mas vais fazê-lo de novo. Voltas a pô-la onde estava e trazes-ma de novo.

Calei-me. Se ela me ordenou então é melhor não reclamar. Não sei em que estava a pensar para me mandar fazer aquilo. Com certeza queria-me manter ocupada por mais um ou dois minutos, que é o tempo de subir e descer as escadas. Nada mais. Tem andando rabugenta, vou dar o desconto.

-Toma, para ti. Para quando te fores embora.

Deu-me, depois de lhe ter dado a maldita pá. Era um cobertor. Não um cobertor normal, um daqueles bordados estilo avó. Achei uma doçura ter-me feito aquilo, não que gostasse do cobertor. Era o mais feio que alguma vez vi. Horrível. Ternurento contudo. Fazia-me lembrar a cultura tradicional de Portugal, provavelmente era esse o objectivo.

- Oh obrigada, vou levá-lo, disso podes ter a certeza.

Sim, ia levá-lo. Nem que fosse para não desiludir a minha mãe que o fez com tanto carinho. Se estivesse no lugar dela também estava assim, sensível. Ao saber que a sua filha mais velha iria partir para bem longe, à procura de algo melhor – de uma nova oportunidade. Compreendo. É por isso que tenho paciência para ela e as suas costuras. Desta vez aceito de bom modo.

- Devia-te ir preparar um bom lanche, pode-te dar a fome no avião.

- Mãe, não preciso de nada. Lá também existe comida. Tu sabes isso. Tem calma. Venho-te visitar assim que possa. Já no Natal!

Eu também estava a começar a ficar nervosa, partiria dali a três horas. Voltaria mas não para ficar, sabia que a próxima vez que cá viesse seria de visita, uma daquelas rápidas – nada de especial. A verdade é que gosto de Portugal, apesar de ser demasiado pequeno para mim, com demasiados problemas e feito de poucos caminhos com sucesso. Apesar de tudo gosto disto. É bonito. Vou ter pena. Aqui conheço tudo, lá não conheço nada. Vou ser uma estranha a querer ser reconhecida. Parece algo impossível, o meu sonho. Ao menos vou-me esforçar, penso…

- Agora tenho de me ir embora. Não quero que me acompanhes ao aeroporto. Sabes que não aguentas despedidas destas.

Não olhei para trás. Seria pior. Tinha medo de renunciar ao meu futuro país. Seria demasiado provável isso acontecer para me atrever a virar e olhar mais uma vez para a minha família, a minha casa, a minha terra, o meu país. Decidi por isso encaminhar-me até ao aeroporto o mais depressa possível. Tenho de ter pensamentos positivos. Tudo irá correr bem, sim, é isso! A saudade vai ser só um preço daquilo a que me vou sujeitar. Não há nada a recear. Nada.
Como o cobertor já não cabia nas grandes malas de viagem que carregava decidi metê-lo na mala que vai comigo no avião só para o despachar, não quero ter mais lembranças de casa até chegar ao meu destino pelo menos.


Avião. Em viagem há quatro horas. Saudades apertam. Quero voltar. Gosto de Portugal. Cala-te, não penses nisso! Vais adorar o país para onde vais, sonhavas com ele em pequena sua estúpida! Não sejas medricas. Tudo vai correr bem. De repente lembro-me do cobertor, está ali ao meu lado – na mala. Vou buscá-lo, só para o ver melhor, ainda não tive tempo.
Tirei-o mesmo ali, era lindo! Nem lhe dei valor quando a minha mãe mo deu há cerca de sete horas atrás. Continha tudo – as minhas lembranças - a minha infância, a minha adolescência, a minha universidade, o meu primeiro namorado, o meu primeiro beijo, a minha primeira discussão, os arrufos com os meus pais, as birras com a minha irmã, a paciência que tive com a minha mãe, as viagens, os meus locais preferidos – tudo. Afinal não passa de um cobertor feito de trapos coloridos, mas é bom na mesma. Deve ser quentinho. Reconfortante para a alma, quente para o coração. É o meu Portugal espelhado. Não faz mal ser defeituoso, a minha vida até agora também não foi perfeita. É o meu cobertor feito de trapos. A minha memória confiante em bocados de costura colados.

- Boa noite - diz a hospedeira - Precisa de alguma coisa? Quer algo que lhe aqueça? Um cobertor? Uma almofada para se sentir mais confortável?

- Não obrigada, estou bem assim. Não tenho frio algum. Boa noite.

Enrolei-me no meu cobertor, o cobertor do meu país. Meu por direito. Aqueceu-me durante aquela noite e por durante todo o resto da minha vida. O meu cobertor, nosso – reconfortante para a alma, quente para o coração.

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