quinta-feira, 25 de agosto de 2011

E assim o mundo mudou


- Peço um desejo?
- Sim, agora mesmo com toda a força que conseguires. Acredita só que é possível e ele terá todas as hipóteses para ser concretizado.

Ele não sabia como ganhar forças para um desejo, era a primeira vez que o fazia. Nunca lhe tinha sequer passado pela cabeça que uma pessoa como ele podia pedir desejos, nunca tinha imaginado que era possível eles serem realizados com um pouco de sorte ou talvez de engenho.
Eram três da manhã, o seu turno de vigia aos caixotes do lixo tinha terminado finalmente, depois de cinco horas sentado no chão frio ao relento numa noite de inverno rigoroso com apenas um caso de malha rasgado e gasto a cobri-lo, tinha acabado a sua tortura. Odiava ficar de vigia, sempre se tinha sentido à parte dos outros membros desta comunidade sem lar por essa razão. Para qualquer rapaz da sua idade era uma oportunidade esplêndida de obter um naco de carne podre a mais sem que ninguém soubesse. Mas para ele eram só mais umas horas passadas em desperdício de uma comida que não existia, já sabia que iria acabar por comer pó do chão em vez de um bocado de pão bolorento ou restos de comida de um restaurante porque os seus compatriotas faziam o favor de o atirar para uma borda e baterem-lhe até não terem mais forças para ele não conseguir comer e deixar assim mais para os outros, estes outros que eram eles em forma de egoísmo, naquelas ruelas obscuras da cidades chamava-se a isso sobrevivência.
Acabava assim por ser o mais pobre mendigo que por lá havia naqueles bairros degradados, ele ainda estava mais abaixo na escola social da Humanidade do que a própria mendigação, poucas pessoas sabem que existe pior, mas a verdade é que ele era a prova disso.
Naquele dia, depois de mais uma vigia atribulada por rapazes famintos e bruta-montes, depois de mais um período de fome imensa e frio derrapante, conseguiu encontrar um bom refugio para fugir aos ”nobres”, sim, era assim que se chamava aos mendigos quase a passarem a estatuto de salteadores profissionais, eram a classe das classes, os piores dos piores, os mais famintos dos famintos e os mais perigosos dos perigosos. Eram o medo. Principalmente o medo dele. Todas as noites tentava encontrar um bom lugar para se esconder, preferia morrer de fome do que nas mãos daqueles ladrões de má qualidade.
Encontrou um túnel perto do rio da cidade, um túnel dos esgotos, mas não era um dos principais, era um daqueles secundários que davam aos sítios mais obscuros e longínquos. Era o local perfeito para se esconder, pelo menos já sabia que naquela noite não iria morrer de espancamento, talvez sim de fome, de magreza, de diarreia, de cólicas, de tosse, de enxaquecas, de dores de barrigas, fosse o que fosse não se importava, apenas não queria deixar o mundo através dos nobres, mas de outra coisa, uma coisa mais pura e natural.
Sentou-se junto a um ninho de ratazanas que ali estava, sentou-se naquele mesmo sítio porque tinha uma espécie de janela, com grades que fazia lembrar uma prisão, mas no fundo era só um túnel de uma rede de esgotos e ainda bem.
Olhava por essa dita janela quando apareceu alguém, sobressaltado levantou-se com medo mas não se pronunciou, sabia que não podiam ser os nobres, por aquela hora deviam estar a assaltar uma loja ou um carro ou dois. Era um alguém idoso, conseguia-se perceber a respiração ofegante e dificultada, mas mesmo a respirar sentia-se a experiencia de vida que esse alguém tinha, inalava experiencia aos montes.

- Quem és? – Perguntou o rapaz assustado pela sua vida.
- Um velho.
- Um velho?
- Sim, um velho. Qual é o problema? Já não posso ser um velho pobre? – disse- lhe já um pouco indignado.
- Podes, quer dizer, não sou eu que te vou dar permissão ora essa! És o que quiseres, quero lá bem saber. Desde que me deixes em paz oh velhadas! – Protestou o rapaz mostrando os seus poucos modos, ou nenhuns, aqueles que nunca aprendeu a ter.
- Então deixa-me ser. Mal criado!
- Apenas protejo-me daquilo que não vejo! – Ripostou o rapaz.
- Ainda tens muito que aprender rapaz, não me insultes, vou até ser teu amigo e juntar-me a ti. E não reclames, ou menos assim sabes que não morrerás de frio por hoje! Vá, chega-te para lá, fica do lado onde estão os ratos se me fazes favor.

O rapaz nem piou, fez o que o velho lhe mandou, sabia que ele tinha razão. Até podia ser que ele tivesse um pouco de comida que lhe desse se estivesse de bom humor e o tratasse bem. Por aqueles lados a esperança é sempre a ultima a morrer. Nunca se perde em tentar. E ele não iria perder nada – tinha mais força que o velho se fosse preciso dar-lhe uma coça.
Foi por essa altura que ambos os dois ao olhar para o céu através das grades enferrujadas viram uma estrela cadente e foi nessa altura também que o velho lhe disse para pedir um desejo.
Pareceu-lhe uma tarefa difícil, pedir um desejo, imaginou mil e uma coisas que gostava de ter – lembrou-se primeiro de um par de sapatos, nunca tinha tido uns, depois lembrou-se de pedir calças, camisolas, gorros, enfim, cada vez os seus desejos se tornavam mais ambiciosos até chegar ao ponto de considerar em pedir um carro blindado e por ultimo um país. E no momento em que estava para o fazer sentiu uma pequena voz, minúscula mas distinta a invadir-lhe a mente. Era a voz dos mendigos com mania que diziam que ele nunca alcançaria o lugar de nobre, nunca seria nada, apenas lixo, lixo humano ranhoso, que era assim que lhe chamavam. Diziam-lhe que estava destinado a ser nada. Um nada absoluto. Um nada que não serve para nada. E de repente a raiva soltou-se de dentro de si, sentiu uma oportunidade de ouro para inverter a situação. E no último momento em que ainda conseguiu ver a estrela disse para sim próprio com uma fé que nunca tinha tido:

“Quero ser alguém, um alguém bom - que mude o mundo e que este mude com ele”

- Fizeste uma boa escolha rapaz. – disse o velho.
- Mas…mas..como sabes o que desejei? Como? – O rapaz estava arrepiado.
- Sou mais do que aparento, tal como tu, que és mais do que um lixo humano ranhoso, és um bom rapaz, há-des ser um exemplo. Agora adormece quente e confortado, vais ser recompensado meu caro.

E ele fechou os olhos, involuntariamente. Morreu, aquecido por um humano, ou meio-humano, não aos murros por um nobre. Morreu, mas de boa vontade, para dar a conhecer ao mundo a vida abaixo da pobreza mínima. O certo é que o seu desejo foi realizado e que ao encontrarem tal alma santa morta naquele tão imundo túnel as coisas mudaram, as pessoas aperceberam-se, finalmente alguém tinha feito jus aos famintos injustiçados pelas classes. A verdade é só uma -  o mundo mudou e este rapaz mudou com ele.

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