segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Maria

1912, Lisboa.

- Minha Mãe, por favor, peço-lhe …

- Matilde, a menina já sabe o que penso sobre isso. Não, nem pensar. Se o seu pai soubesse nem queria ver, sabe o quão mal isso lhe fica, suja o nome da família em instantes, tudo por um rasco rapaz que vende jornais. Olhe para o Miguel, ele sim seria um bom companheiro, não seja insolente, pense bem. Está a estragar a sua vida com esse rapaz de soslaio. Que maus modos, que rude que ele é! Não sei onde a menina lhe foi buscar o encanto, não saiu ao pai com certeza, esse era um cavalheiro.

Dizia a Dona Maria Isabel Augusta Albuquerque à sua filha, lembrando-se dos bons tempos que tinha passado com o pai do infeliz amado de Matilde. Questionava-se como tinha ele passado de um cavalheiro, dono das províncias do norte, a um farrapo que por ali andava cambaleando e sendo acartado pelo seu filho, Duarte Cabral. Ninguém sabia da história destes dois amantes, por vezes achava-se ingrata com Matilde, porquê proibi-la de amar um sujeito pobre, se também ela já amou e continua amar. Por sinal vêm os dois da mesma família, pensou que talvez fosse genético o encantamento pelos Pereira Cabral. Não quis continuar mais com estes pensamentos que lhe deliciavam as memórias, lembrava-se das corridas pelo campo com o pai de Duarte, José – o seu eterno amado. Lembrava-se dos passeios de carroça que faziam vibrar a sua jovialidade e das tardes passadas somente a conversarem, como tudo tinha sido tão bom. Achou-se enquanto pensava nisto numa situação irreversível, já era velha, tinha uma filha de 20 anos, a sua querida Matilde que era perfeita tanto pelos seus cabelos castanhos que irradiavam madeixas douradas ao sol, como pelos seus olhos verde água ou pela sua simpatia, generosidade, amabilidade com os outros e determinação. Só desejava que ela fosse filha de José, o seu amado. Infelizmente foi obrigada a ter de viver com um homem carrancudo e inconsistente, demasiado tradicional, com os respeitos da família em primeiro. E a Maria, como boa mãe, teria de honrar isso. Não poderia decerto deixar a sua filha ir ter com Duarte, seria o fim, de todos. Mas o seu amor a José e as memórias que a assaltavam e lhe roubavam o coração fizeram-na reconsiderar. Tudo o que ela dizia acerca de Duarte era mentira, também Maria o adorava, principalmente porque tinha os traços de José tanto no rosto como na personalidade. Miguel, o rapaz jovem e rico da cidade queria Matilde, mas este tal como o seu marido não sabiam dar valor às coisas, às pequenas coisas. Maria sabia que por agora isso podia ser insignificante mas como ela já experienciou iria ser o pesadelo de Matilde todos os dias ao acordar. Jamais queria isso para uma filha sua.

“Quero que a minha filha seja feliz.” – Pensou.
E com cuidado para que as aias não ouvissem ou se ouvissem, pelo menos que fosse algo um pouco correcto, disse:

- Vai, quero-te em casa às quatro da tarde, tem muito cuidado. O Duarte ama-te mas o amor às vezes é traiçoeiro, nunca se sabe o que vem depois. Uma alma apaixonada é um corpo indefeso. Agora vai, rápido. O teu pai não te pode ver. Leva um vestido simples, não um com os bordados da família, vai por mim quando te digo que é melhor ires confortável do que esse teu garrido vestido balão.

- Oh minha mãe, não sei como te posso agradecer. Eu amo-o. A senhora sabe isso, ele é a minha força e ao mesmo tempo o meu ponto fraco. Não conseguiria viver sem ele. Muito obrigada por esta oportunidade, minha mãe – amo-a a si ainda mais decerto. Às quatro aqui estarei.

Deu-lhe um beijo e despediu-se de Maria. Mas antes de ela partir disse-lhe ao ouvido sempre com o cuidado de ver se as aias estavam por perto:

- Vai-te! De vez meu amor, não mereces a ingratidão desta vida que me foi escolhida. Foge com Duarte para bem longe, vivam, amem…como eu não pude amar. Vai-te! Estarás sempre no meu coração Matilde minha linda filha. Não te preocupes, do teu pai eu trato.

Assim que viu Matilde sair pelas portas do seu jardim as lágrimas escorreram-lhe do rosto. Só desejava terem-lhe dado a mesma oportunidade quando também ela tinha 20 anos, ao invés disso foi obrigada a viver uma eterna solidão para o resto da sua vida. Não se importa que nunca mais veja Matilde, porque ela sabe que estará sempre bem, na harmonia do seu amor. Alegre e nunca se sentido sozinha com um vazio incapaz de ser preenchido.
Foi a última vez que a viu, a sua perfeita filha, que nasceu dentro dela e que dela fará sempre parte. E assim viu-a partir…

1928, Minho

- Amo-vos.

Foram as últimas palavras ditas por Maria, escaparam da sua boca com um enorme esforço. O seu último suspiro aplicado nelas, cheias de valor e boas intenções.
Morreu já velha, dona de uma experiência e solidão nata, feita historia em seu nome morreu em paz. Muito viveu depois de se separar de Matilde, mas pouco proveitoso foi sem ninguém que ela amasse por perto.
Quando o seu marido morreu sentiu-se rejuvenescida e decidiu procurar José, Matilde e Duarte. Utilizou todas as forças que uma idosa pode ter para os encontrar. Em 1927 encontrou finalmente José, no Minho. Sepultado. Que desgosto enorme sofreu, preferia terem-lhe espetado dez espátulas de madeira pelo coração adentro do que saber de tal notícia. Mas mesmo assim não desistiu de sua filha e seu correspondente amado, que por aquela altura já deviam estar casados. Acontece que gastou toda a sua porção da herança a procurar José e então, pela primeira vez em toda a sua infeliz vida, decidiu lavrar a terra já com 65 anos de idade para ganhar uns dinheiros, o suficiente para poder sobreviver e conseguir ir ao encontro da sua filha antes de morrer. O único objectivo na sua vida para além de viver feliz para sempre que não conseguiu realizar. Vendo então que estava a morrer aos poucos, encaminhou-se para Minho a 16 de Março de 1928, data da sua morte. E quando o relógio batia as doze badalas, fechou os olhos para sempre junto ao seu amado José. Seria uma morte perfeita não fosse a ausência de Matilde. No entanto morreu com ela nos seus últimos pensamentos, já era suficiente.


Pouco meses depois vinha Duarte visitar seu pai à campa quando se deparou com o corpo em decomposição. Imediatamente chamou Matilde, sua companheira de uma vida e seu eterno amor, viviam felizes - era o que Maria queria e assim foi.
Choraram a sua morte, também Matilde andou à procura de Maria, infelizmente estas não se encontraram pelo caminho. Ambos objectivos inalcançados. Contudo havia uma carta, junto ao peito de Maria, em cima da sepultura de José. Estava impressionantemente conservada, seria obra de um milagre certamente. Tinha uma letra esguia e trémula, notava-se que quando foi escrita poucos meses antes, já as forças eram quase nulas. Mas era bom saber que Maria fê-la considerando que eles a iriam encontrar.

“Meus queridos amores,

Agora que lêem isto, de certo se aperceberam que parti para outro mundo, mas estou bem não se preocupem, estou junto a José, teu pai caro Duarte. Sempre o amei, apesar de ter sido um amor impossível, dele e da minha vida acartei muitas lições. Escutem-nas antes de me enterrarem nas vossas memórias:
 - Aprendam a viver com aquilo que têm, é precioso. Sejam felizes com aquilo que vêem, é mágico.
- Não existem erros, apenas lições. Como esta que vos ensino.
- Nasceram como originais, não morram como cópias. Não tentem ser o que o outro foi, vocês podem ser muito melhores, e são.
- Quando quiserem algo que nunca tiveram terão de fazer algo que nunca fizeram. Corram riscos. A vida é um deles. Procurem as oportunidades.
- Se não conseguirem rir-se de vocês próprios nunca terão o direito de se rirem de outros.
- Se não avançarem estarão sempre no mesmo lugar, se quiserem uma resposta terão sempre de perguntar.
- Sem arrependimentos, a vida já vos dá demasiados.
 E o mais importante de tudo – façam história. Ela existe para ser feita.

Deixo-vos com o meu coração em paz e repleto de bons momentos, pois só esses importam.
Sejam felizes, não há maneira dos outros, mas à vossa.

Maria Isabel Augusta Albuquerque”

A verdade é que Maria fez história, a sua mais importante lição cumprida à letra.

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