terça-feira, 6 de setembro de 2011

O tempo incompatível


O relógio parou naquele momento. Os ponteiros não moviam mais. As pessoas estacaram. As ruas ficaram silenciosas, repletas de figuras humanas paradas, indicando ainda sinais de expressão usados nos últimos segundos em que a Terra ainda contava o tempo.
Pelo menos era assim que tudo parecia aquele homem cujos olhos não semicerravam de tanto espanto, olhava fixamente para baixo, encontrava-se no alto de um apartamento do sétimo andar e olhava para o acidente que tinha ocorrido naquele mesmo instante na estrada à frente do seu prédio antes de tudo parar, como foi aquilo acontecer, perguntava-se.
Tinha acabado de acordar, ainda estava um pouco atónito, a noite passada não foi a melhor, tinha sonhado com a sua mulher, a sua bela mulher que agora já não lhe pertencia, sentia-se frustrado com isso – tiraram-lha sem aviso prévio, sem qualquer momento de preparação, simplesmente deixou de ser sua em segundos, talvez menos. Sentia-se inseguro e impotente desde então, sentia que nada lhe pertencia, no seu pensamento se podiam-lhe tirar a coisa mais poderosa que tinha de um momento para o outro também as coisas mais mínimas seriam fáceis de serem roubadas e por isso deixou de se agarrar a elas, deixou de querer possui-las, de que valia? O mais certo era também desaparecerem da sua vida tal como a sua amada.
Tinha sonhado que estava a acordar com o cheiro de panquecas prontas a serem servidas, tal como o seu amor lhe fazia aos sábados de manhã. Adorava acordar desses jeitos, talvez tenha sido por isso que sonhou, já não sentia esse cheiro há dois anos – não tinha ninguém para lhe fazer as panquecas, quem ele queria que fizesse já não estava presente. Foi uma desilusão quando ao acordar o único cheiro que sentiu foi o de transpiração, tinha sido uma noite abafada… Assim que acordou dirigiu-se à cozinha, procurou algo para fazer ele as panquecas e assim tomar o lugar da sua amada mas rapidamente percebeu que não tinha nada para as fazer, nem local para tal. Aliás, todo o apartamento era só ocupado pelo essencial para sobreviver. Não tinha livros, estantes, secretárias, televisão, cadeiras, tapetes, nada. Tinha apenas o básico, ele não queria correr o risco de perder mais coisas a que se afeiçoava, preferiu ao invés de sofrer ter apenas o mínimo possível - um fogão, um prato, uma cama, uma almofada e um frigorifico, apenas isto.
Decidiu ir então à janela da sua sala, apeteceu-lhe olhar para o mundo, já não convivia com ele há demasiado tempo, uma espreitadela não faria mal algum. Mas depressa se enganou, mal olhou a primeira coisa que viu foi o acidente e foi aí que o relógio parou. Pelo menos o seu.
As suas memórias avivaram-se tão rápido como se aviva uma flor pela Primavera, os seus pensamentos retrocederam anos tal como retrocedem rapidamente o de outras pessoas ao verem coisas passadas que já lhes foram queridas. A sua alma quebrou lembrando um jarro de vidro delicado, as lágrimas jorraram como a água jorra viva e energética de uma nascente poderosa pondo em risco o naufrágio do seu barco pessoal assente nas suas memórias novas e felizes. O seu corpo tremeu como tremem as árvores medrosas pelos ventos furiosos. Pobre homem.
Deu por si a perguntar se também naquele acidente alguém perdeu o seu amor, tal como tinha ocorrido com ele. Sentiu-se uma pessoa malévola ao desejar no seu mais profundo eu que tenha perdido, para não ficar sozinho neste mundo, para não ser só ele a sentir um vazio incapaz de ser preenchido, um vácuo sem nada que possa entrar, um sistema fechado e ocupado com um nada que lhe consumia aos poucos, o matava. Era injusto, ele sobreviveu e ela morreu ao choque entre dois carros, mas era ele o culpado, foi ele que se distraiu a pensar nela enquanto conduzia. Quem ficou no mundo para sofrer foi ele, foi por isso que não se matou entretanto, achava até agora que merecia tal dor, merecia sofrer daquele modo por ter deixado a sua mulher morrer tão tragicamente, achava que eram as pagas da sua distracção de segundos que depois acabou por determinar o fim da sua vida de tempos felizes.
Sentiu então, quando o relógio parou, que se tinha feito justiça, quando viu os dois sujeitos presentes em cada carro a saírem deles sãos e salvos - tomou aquilo como um sinal. Afinal há sempre uma réstia de esperança, mas então onde se encontra a minha, pensou. Foi nos poucos momentos em que o relógio se manteve parado que percebeu que a sua esperança se tinha desvanecido com o seu amor, ela era a sua esperança, e morrera. Estava agora na hora de voltar a tê-la.
Levantou-se com cuidado da cadeira de rodas que já o acompanhava desde o trágico acidente, apoiou-se na parede lateral da sala onde se encontrava a janela. Abriu-a. Respirou fundo, beijou o seu anel de casamento e atirou-se para a estrada, de um sétimo andar. O seu destino acabou, em cima de um carro, um dos quais teve o acidente. Morreu assim alguém daquele choque entre veículos, não nenhum dos condutores, não mereciam, pois se calhar como aconteceu com ele estavam naquele momento a pensar no seu amor em vez de estarem concentrados na estrada, é difícil concentrarem-se quando têm algo maior a apoderar-se deles, a paixão. E o homem compreendeu isso. Deu então a sua vida, que pouco de vida tinha. Não se importou pois uma melhor o esperava, assim acreditava ele. Nada o fazia continuar neste mundo, até já nem o relógio da Terra ele conseguia acompanhar, para ele já não havia o conceito de tempo.
E depois de ter partido, o ciclo da vida retomou a sua normalidade, as pessoas movimentaram-se de novo agitadas, nem olhando para o que aconteceu na estrada. Os relógios repuseram o seu ritmo. Os ponteiros moveram-se. A vida continuou. Para ele também, apenas noutro local talvez, onde o tempo é compatível com a sua alma.

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