sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Há coisas que nunca desenhei



Hoje é o dia de esvaziar o lixo.

Aquele dia, que eu por sinal odeio, em que revejo velhas memórias, amarrotadas e deixadas à deriva. Não posso negar que o fiz de propósito, prefiro revê-las a deixá-las mesmo ali, indecisas, sem lugar para onde irem nem ninguém onde pousarem. Às vezes é bom imaginar o seu destino, aquele que habita nos nossos sonhos e não temos coragem de passar à realidade, quanto mais ao papel. É por isso, que hoje tenho de deitar o lixo fora. Já vai cheio de papéis amarrotados, cheio de linhas e riscos que em tempos foram sonhos e que hoje são outra vez mero carvão, farrapos.

Lembro-me de desenhar rectas, eu adorava rectas. Quanto mais olhava para elas, mais me pareciam imutáveis, mortas, demasiado perfeitas. Deixei de gostar. Deixei de traçá-las, eu sabia, no fundo, que nenhuma recta é suficientemente recta. Sabia ser impossível passar à realidade coisas que nem o papel gostava, nem os meus olhos. O meu balde foi enchendo. Dezenas de papéis amontoaram-se, amarrotados, com linhas direitas, sempre com o mesmo sentido, o mesmo caminho, as mesmas decisões - previsíveis, nada humanas.

Então foi dia de deitar tudo fora e começar de novo. Tudo a lápis. Mas a borracha também não faz parte dos sonhos. Não se apagam, desvanecem-se com o tempo – como o carvão.

Achava que entrar no lado perigoso da vida era desenhar riscos, mas para mim, eram sinal de mais, de menos, de tanto e por vezes pouco. Representavam a minha confusão, os meus amores desalinhados e imprevisíveis, o meu pensamento desarrumado e sem gavetas que o organizasse. Era o impensável, a vida num papel. A revolta. Eu lembro-me de adorar a revolta.

Não durou muito até confiar, deixou de ser algo pessoal e de modos suaves fui deixando os papéis na mesa, para quem passasse. As respostas não demoraram a chegar, os riscos eram feios – sonhos impossíveis, estúpidos, sem perfeição. Era o que achavam dos meus lindos desenhos (riscados). Eram o carvão da minha alma, a energia que me movimentava. Mas todo o carvão se esgota e todo o sonho degenera sem convicção. Mais uma vez, tive de sair à rua, envergonhada, com mil olhos postos no que acartava, o balde cheio pronto a esvaziar.

Sim. Hoje também é dia de ir ao lixo. Deitar o carvão fora. Posso desenhar sem lápis e apagar sem borracha. As linhas rectas são o que me travam a imaginação contudo são o sustento do meu equilíbrio. E os riscos, esses, continuam lindos, não importam o que pensam. São os meus riscos, desenhados sem o carvão que se desvanece, nem perseguidos pela tentação de uma borracha. São só riscos, abstractos, que talvez um dia, quem sabe, sejam mais que pontos invisíveis.

Vocês, sonhos feitos em desenhos, rabiscados e mal conseguidos, enchem-me a memória, que sabem ser o lixo da minha futura vitória.
Nunca se esgotem, o meu balde tem capacidade infinita.

4 comentários:

  1. muita força daqui para para a frente :)

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  2. "Vocês, sonhos feitos em desenhos, rabiscados e mal conseguidos, enchem-me a memória, que sabem ser o lixo da minha futura vitória." AMEI PRINCIPALMENTE ESTA FRASE .
    No fundo é isto mesmo , temos que saber selecionar e excluir para seguir*
    Amei*
    Seguirei*

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"Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido"