quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O elogio da ausência - excerto III


4 de Fevereiro de 1900

8h15m

- Estás à espera de alguma coisa? – Disse Margarida, estranhando a presença do marido ainda aquela hora em casa.
                Duarte estava a olhar para ela como quem olha para uma sereia, enfeitiçado pelo seu encanto e beleza. Na verdade, naquele dia particularmente, a Margarida reflectia uma ternura natural que já não lhe via desde o dia em que se casaram, fazia dois anos dali a duas semanas, mais ou menos.
                - Estou a admirar-te, minha querida.
                Ela ficou especialmente espantada por aquele elogio logo pela manha, estará doido?, pensou. No fundo, estava contente, já haviam meses que nenhuma palavra acerca do seu aspecto era pronunciada. Que esplendor e felicidade que Margarida estava a sentir naquele momento, de maneiras tão grande que lhe apetecia fazer amor com ele, ali, entrelaçados no meio da loucura. O seu desejo foi aumentando e começava a sentir-se nervosa com a sua presença, não se queria descair no meio daquela cozinha improvisada. Margarida acalma-te, foram só umas palavras de bom dia do teu marido, não penses já coisas, despede-te dele, vá. Disse para si própria, na tentativa de persuadir os seus desejos.
                - Tenho de ir embora, já estou atrasado. Só queria falar contigo um pouco. – Foram as palavras de Duarte, saídas com tremura.
                Ele estava nervoso e Margarida sentia-o na sua própria pele, como se o que ele sentisse ela também conseguisse presenciar, por pura união. Sempre achou que se completavam de uma maneira como nenhum outro casal que ela alguma vez conheceu. Amavam-se, sobretudo.
                Duarte tentou não parecer assustado, fez de tudo para se ir embora naturalmente. Sem que ela percebe que algo mais se passava. Acariciou-lhe a barriga, que já acartava um rebento de cinco meses, o seu futuro filho – ele sentia que era um rapaz que viria ao mundo – que sabia nunca vir a ver. Por vezes dava por si a imaginar os jogos e brincadeiras, as passeatas e as idas à caça com ele que terminavam com um lindo jantar feito pela sua adorada mulher. Iriam ser os melhores amigos, poderia ter uma vida perfeita. Não fosse o seu passado o atormentar.
                - Levas o farnel? Não te quero a passar fome, enche-me essas peles! – Repeliu Margarida, entusiasmada ainda com a simpatia do marido de há pouco, pondo a sua tigela de batata e carne num saco de serapilheira já velho e usado.
                - Está descansada, este belo almoço só vai ficar seguro quando estiver na minha barriga. – Duarte decidiu brincar, preferia que ela o lembrasse com frases divertidas ao invés de lamúrias que não serviam para nada e só atrapalhavam a vida.
                - Vá, não te demores mais comigo – deu-lhe um beijo repleto de ternura e paixão – Não quero que te despeçam, temos um filhote a caminhar para este mundo e precisamos de todo o dinheiro possível.
                Esta era a parte mais difícil. Ele sabia ser a última vez que a veria, nada podia fazer em contrário. Já tinha decidido receber esta despedida de ânimo leve e acreditar que era o melhor para todos. Se ao menos ela soubesse…, pensou para si mesmo. Mas não, ela não podia saber. Restava despedir-se com a simpatia, ternura, elegância e coragem que ela própria merecia. E assim fez, deu-lhe um último beijo sôfrego e juntos ficaram abraçados durante algum tempo. Margarida estava atónita com todo este amor, ao qual não estava habituada - Duarte estava sempre tão atarefado que pouco tempo tinha para lhe dedicar. Mas não resistiu, apesar de pressentir que isto não vinha ao acaso. Para ela, nunca nada vinha ao acaso. No entanto, como excepção, não se preocupou. Confiava no marido. Amava-o incondicionalmente.
                - Adeus Margarida meu amor, até logo. – Sorriu, temendo o pior. Que ela viesse a descobrir a força que ele fazia para não deixar escorregar uma única lágrima mais matreira.
                - Ai credo homem, que romantismo é este todo? – Saiu-lhe.
                - Sou eu, contente por te ter.
                E foram as últimas palavras que pronunciaram um ao outro naquele dia e em muitos anos que se seguiram. Talvez para sempre.

Excerto do livro "O elogio da ausência" escrito por Sara Penas.

4 comentários:

  1. Muito interessante o Blog
    Gostei muito do que vi por aqui.

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  2. Estas histórias deixam-me quase sem pestanejar para não perder uma vírgula. Se este excerto tivesse mais uma frase só, era capaz de chorar!
    Sofro com estes contos ;D
    Imagino com ansiedade a continuação.

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"Escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido"