Eu sei. Eu lembro-me. Foi num dia de chuva. Chovia a potes, dizias tu.
E dizes, creio. Nunca mudavas de hábitos, portanto ainda o deves dizer. Ou pelo
menos, sê bom para mim - deixa-me imaginar que ainda o dizes. Por favor. Preciso
de saber que ainda te conheço, que ainda sei as marcas na tua cara, como sei as
da tua pele, as dos teus olhos, as mais negras – sabes – aquelas que só eu via.
De que te envergonhavas de mostrar, porque – sei lá – o negro do teu corpo
sempre te aterrou.
Para dizer a verdade – a mim também. Mas está tudo bem, ninguém
precisa de saber disso. Só nós. Não te preocupes. Continua a sorrir-me, a
embalar-me, como fazes sempre. Que eu não conto a ninguém do que te fizeram.
Ainda é o nosso segredo não é? Só nosso, eu prometo. Eu juro. Como te jurei não
esquecer. E sabes … eu não esqueci. Seria impossível esquecer-te.
Eu sei. Eu lembro-me. Foi nesse dia de chover a potes. Estavas
encharcado – aterrado até cima de água e de memórias. Mal andavas - todo
ensopado e ferido, morto para quem te secou, vivo para quem te enxugou. Para
mim – estavas só ali tu, o mesmo de sempre, o mesmo de todas as horas, de todos
os momentos. Somente tu. Por favor, diz-me que ainda continuas somente tu –
quero lembrar-me das palavras que gastavas comigo. Eu sei. Eu lembro-me. Delas.
De ti. De nós.
A escuridão das tuas marcas abandonaram-te, sumiste. Juntamente com
esse dia em que potes caiam do céu. Para mim caiam tijolos, não potes. Caía o
peso das tuas mágoas, feitas lágrimas que não se retêm. Feitas vidas que não duram,
águas que caiem e que não marcam, que sufocam e não esquecem.
E por isso eu sei. Por isso eu lembro-me. Por isso choveu.